Sem Título #027

...Ela é estranha. Desce pela garganta amarga e com uma consistência tão nojenta que nos faz querer vomitar.
Mas quando ela finalmente passa e chega ao nosso estômago, sentimo-nos aliviados, nos faz ver que era exatamente isso que precisávamos, que isso que mata a nossa fome e que é inevitável engolí-la. Ela, a vida, por mais ruim que seja...



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Sem Título #026

Estava caindo numa tristeza sem dor, não era mal, fazia parte com certeza. No dia seguinte provavelmente teria alguma alegria, também sem grandes êxtases, só um pouco de alegria e isso também não era mal. Era assim que ela tentava compactuar com a mediocridade de viver. Mas era tarde, ela ansiava por novos êxtases de alegria ou de dor. Tinha era que ter tudo o que o mais humanos dos humanos tinha. Mesmo que fosse a dor ela suportaria, sem medo novamente de querer morrer. Suportaria tudo. Contanto que lhe dessem tudo. Não. Ninguém lhe daria. Teria que ser ela própria a procurar a ter.
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Eutanásio

00:10
    -Acorde, Eutanásio.
Eutanásio. Homem comum, trabalhador, pai de família, vota no PT e torce pro Caxias.
    -Vamos lá, Eutanásio.
Ele se levanta.
    -Agora, vá até o banheiro, Eutanásio. Mas não faça barulho, ninguém pode ver.
Ele calça as havaianas, e vai, pé ante pé, sem fazer barulho. Eutanásio é muito cuidadoso.
    -Muito bem, muito bem. Agora faça, Eutanásio.
Ele hesita por um momento.
    -Vamos lá, eu sei que você consegue.
Então, ele levanta o pé, mete dentro da privada e dá a descarga.
    -Muito bem, Eutanásio! Eu sabia que você conseguiria! Agora, volte pra cama antes que percebam algo.
Ele volta pra cama, com um sorriso de orelha à orelha estampado no rosto.
Isonilda, a esposa, sente algo gelado nos pés.. ou seria úmido? Bobagem. Deve ser um sonho. Ela volta à dormir.


 00:09
    -Acorde, Eutanásio. Já sabe o que fazer.
Ele se levanta, calça as havaianas, e vai até o banheiro, pé ante pé. Chega no banheiro, mete o pé na privada e puxa a descarga.
    -Eutanásio, a noite passada a sua esposa desconfiou. Temos que ser mais cuidadosos.
Ele pensa por um minuto. Então, pega uma toalha de rosto branca e seca o pé nela. No outro dia, a empregada acha meio estranho a toalha estar manchada de azul, mas ela não diz nada. Afinal, eles nunca atrasam o pagamento, passam o dia fora e Isonilda sempre compra os produtos da Avon que ela vende, então não há do que reclamar.


00:10
    Eutanásio está na cama, mas não consegue dormir. Ele fica esperando, e nada. 00:30, quinze pra uma..e nada. Quando já é uma hora...
    -Desculpe o atraso, Eutanásio. Tive alguns contratempos. Mas vamos lá, já estamos atrasados.
Ele não se mexe.
    -Ora, vamos, o que é isso? Você ficou chateado?
Nada.
    -Tudo bem. Desculpe. Não vai acontecer de novo, ok? Agora vamos, por favor?
Ele se levanta, com um imperceptível sorriso no canto da boca. Vai até o banheiro, mete o pé na privada, puxa a descarga, mas... Algo acontece! A empregada não deixou toalha no banheiro!
    -Pense rápido, Eutanásio!
Ele se dirige à cozinha e pega um pano de secar pratos, que está sobre a mesa, e seca o pé nele.
    -Nossa, essa foi por pouco hein? Acho melhor pararmos por um tempo, está ficando cada vez mais arriscado.
Mas essa é a melhor parte. Eutanásio gosta de viver perigosamente.
    -Não podemos ser descobertos. Se houverem testemunhas, teremos que tomar atitudes drásticas.
Ele se convence. Eles vão dar um tempo.
No outro dia, na hora do café, estão Lucicleide, a esposa, e Marinalda, a filha do casal.
    -Mãe, o pai tá fazendo aquelas coisas estranhas.
    -Mas de novo? ele não tinha parado?
    -Sim, mas eu sempre escuto ele indo no banheiro de madrugada.
    -Ora, mas o que tem de mal em ir no banheiro de madrugada?
    -É que ele sai de lá rindo.
    -Acho que vou dizer pra empregada pôr menos alho na comida.
No outro dia, a voz não vem. E nem no próximo. E ele se sente orgulhoso de si.


CONTINUA...
Por Moço do Cadarço Desamarrado


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Sem Título #025

Ela já deveria ter se acostumado com isso. Afinal, sua vida sempre foi dessa forma, cheia de perdas. Sempre. Desde quando ainda era uma pequena criança.

Sua 1º experiência com perdas aconteceu aos 5 anos. Um walkman à pilhas que havia ganhado de sua avó. Ela costumava sentar dentro de caixas velhas com o fone no ouvido tocando qualquer canção tosca de alguma fita k7 de seus pais. Semanas depois, seu discman estragou sem motivo aparente e ela teve de se desfazer dele, com lágrimas aos olhos, pois ela adorava aquilo. Sentia-se num cantinho só dela dentro daquelas caixas.

Aos 6 anos, outra grande perda, seus pais já não estavam se dando mais tão bem como antes e sua mãe foi embora de casa, puxando ela e sua irmã, um ano mais nova, pelo seus bracinhos ossudos. Assim perdeu o seu pai, uma peça muito importante para o bom desenvolvimento de uma criança.

Por alguns anos as coisas correram bem. Bem demais para ser verdade.

Sua mãe, mulher bonita arrumou um namorado. Um cara legal. Um cara muito legal, mais legal que o seu próprio pai. (Ah, um adendo: demorou um bocado para que ela descobrisse isso, mas enfim...). Esse cara era tão legal que ela não mais sentia falta de seu pai, mas aí, ele se foi. Porque ela era a menina das perdas. Um infarto o levou para nunca mais voltar.

Quando virou adolescente, começou a gostar de coisas estranhas, influência de sua amizade com cabeludos-metaleiros-heavy-metal-from-hell-yeah! e pessoas do gênero. O cemitério era o lugar mais tranquilo desse mundo para a jovem perdedora, pois ali ela podia ficar sozinha e pensar na resposta para a vida, o universo e tudo mais. Sua mãe, quando descobriu os caminhos escuros pelos quais a sua primogênita andava quase morreu do coração, é claro. Não conseguindo corrigí-la, mandou-a para a casa de seu pai, agora casado e morando em outra cidade. Essa foi uma de suas maiores perdas. Foi-se mãe, irmã, conhecidos de infância e a resposta para a vida, o universo e tudo mais, que anos mais tarde ela viria a descobrir no google.

A nova cidade era legal, diferente de seu relacionamento com a nova família, pois este, não era lá grande coisa, e vinha ficando pior a cada dia.

Coisas como estudar na melhor escola da cidade, comer em restaurantes caros com certa frequencia e fazer algumas viagens ao longo do mês poderia ser algo que satisfaria muitos, mas não aquela garota, agora com 14 aninhos e muitas perdas pela frente. Ela foi se afastando de sua 'família' até não sobrar ninguém. A única pessoa com a qual ela conversava era um garoto que morava longe e sua psicóloga. De resto, seus relacionamentos se resumiam a 'oi' e 'até mais'.

O tempo passou rápido e quando ela completou 18, saiu de casa, abandonando as coisas, antes que as coisas a abandonasse. Uma amiga lhe apresentou uma mulher com a qual a pequena loser morou os 6 meses seguintes, até se 'casar'.

Hoje ela esta por ai, oculta entre os 41.384.000 rostos dessa São Paulo. Sua última perda entre tantas outras não citadas, foi o emprego que ela abandonou há quase 3 meses. Tudo o que lhe resta é o namorado e 2 felinos de estimação. Sua sanidade, postura e todo os resto se foram há tempos.

Torçam para que ela não perca também tudo o que ainda lhe resta.


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Sem Título #024

Não tenho mais certeza de nada. Ando meio confusa e tudo o que sei fazer é dormir e chorar, dormir e chorar...

Essa semana encontrei o fotolog de uma amiga minha dos tempos do colégio. Ela é louca e linda, mas enfim...

Ela me fez lembrar de coisas das quais sinto saudades. Saudades dela, dos outros colegas (porque se fossem amigos estariam aqui até hoje), dos tempos de Alcina. Saudades de quem eu era, de quem eu poderia ter sido se não tomasse tantas decisões assim, digamos que radicais demais pra uma mulher tão menina. Vejo pessoas, lugares e sorrisos que me fazem sentir vontade de voltar. Se eu tivesse que decidir certas coisas hoje, não sei se estaria onde estou.

Arrependimento? Não, isso não se trata de arrependimento.

Onde eu estaria se estivesse feito outras escolhas? Melhor deixar pra lá, eu posso me decepcionar com tudo. Ou não.


(Fragmentos de um e-mail enviado para uma pessoa especial)



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